Antônio Carlos dos Santos1
Quando o resultado das eleições presidenciais de 2022 foi ratificado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) o mercado financeiro ficou nervoso. A razão dessa tensão é que a equipe de transição do Presidente eleito lutava para inserir o pobre no orçamento para 2023. Houve grande estardalhaço com relação à volta do “novo bolsa família” e à inclusão das políticas públicas nos primeiros meses do ano porque isso poderia incidir sobre o aumento da dívida pública aliado ao teto de gastos.
Em meados de janeiro, quando o Brasil ficou sabendo, estarrecido, através do anúncio do rombo de mais de 20 bilhões das Lojas Americanas (podendo chegar até 40 bilhões), segundo o Jornal Valor Econômico, o mercado não teve a mesma reação. A repercussão da notícia pegou muito investidor de surpresa, mas ela não teve a amplitude nas mídias daquele debate travado na equipe de transição do antigo governo com o novo. Ao que tudo indica, o mercado tem quase sempre dois pesos e duas medidas. Ora, o que aconteceu?
Em linhas gerais, assim como os pentecostais medem a fé pela prosperidade, o mercado vê o mundo a partir do lucro. Segundo a mídia, para continuar demonstrando grande capital para seus acionistas e fornecedores, os dirigentes maquiaram o balanço contábil e, literalmente, fraudaram os dados: apresentaram números artificiais de tal modo que, na realidade, o seu patrimônio é menor do que o seu capital para pagar suas dívidas. Foi feito uma grande auditoria fiscal junto a uma instituição privada, conhecida pela eficiência ilibada, e nada tinha sido detectado. Tudo parecia perfeito como a luz solar.
Mas os novos gestores, que assumiram no início de janeiro, perceberam que havia algo de pobre nos números contábeis. Isso trouxe imensas consequências seja para a empresa, para seus funcionários, credores, fornecedores e acionistas, além de outras empresas do ramo, provocando efeito cascata, que vai desde o seu consumidor até os maiores acionistas. As suas ações do mercado financeiro despencaram de R$72,00 para centavos em poucos dias. Isso aponta para o tamanho do rombo e falta de credibilidade de seus gestores.
O mais curioso nessa história toda é a posição de três senhores do maior império corporativo do ramo, considerados alguns dos homens mais ricos do Brasil (e do mundo).
Ainda segundo o referido jornal, apenas uma pequena parte da fortuna de um deles daria para cobrir o tal rombo. Como são amplamente conhecidos, os bancos acionaram garantias jurídicas e administrativas no sentido que eles, enquanto acionistas há cerca de 40 anos das Lojas Americanas, dessem alguma justificativa no sentido de, se a empresa não tiver condições financeiras de sanar a dívida, eles pudessem entrar de forma direta e honrar as suas histórias na empresa enquanto acionista de referência.
Qual não foi a surpresa de muitos quando a resposta chegou de maneira lacunar: grosso modo, diziam, “estamos tão espantados quanto vocês, e somos vítimas tanto quanto vocês”. Esses três indivíduos, conhecidos como “os três mosquiteiros do mercado”, exemplo de “homens empreendedores”, “líderes do livre mercado”, defensores incontestes da meritocracia, montaram um verdadeiro império capaz de, basicamente no mesmo período, terem comprado a Eletrobras.
Não se sabe até onde podemos relacionar uma coisa com a outra. O Ministério Público de São Paulo está analisando o caso. Talvez não haja. O fato é que foram descobertas movimentações atípicas nas ações da empresa no segundo semestre do ano passado nas quais alguém foi beneficiado e muita gente prejudicada no ano seguinte. O MPF de São Paulo quer saber se houve informações privilegiadas divulgadas a fim de favorecer certas pessoas. A menos que esse povo tenha telepatia a tal ponto de vislumbrar, por si só, que as ações vão cair no ano seguinte e que a melhor coisa a fazer seria vendê-las com preço alto enquanto havia tempo…
Não deixa de saltar os olhos que os dirigentes tão experientes não tenham visto as planilhas das Lojas Americanas de perto. O pior, contudo, é ter vastíssimo capital para comprar uma empresa do porte da antiga estatal e não ter ou não querer socorrer a prima pobre em situação de risco. De fato, nesses termos, a conta parece não fechar.
O que podemos depreender dessa história toda? Dois pontos merecem destaque: 1) os principais acionistas da empresa têm dinheiro para capitalizá-la, mas não querem, passando uma imagem de vítima para o próprio mercado (resta saber se o mesmo mercado vai acreditar nessa lorota); 2) a imagem liberal que sustenta o antigo discurso de que o mundo corporativo é eficiente, transparente, ágil e melhor do que a esfera pública é atingido na jugular. Não há argumento que sustente a falta de compromisso dessa gente para com os valores republicanos. Afinal, para ela, a preocupação para com a cidadania é substituída pela cultura do consumo. O mercado tem verdadeiro horror à regulamentação, defendendo a ideia da “mão invisível do mercado”. Mas, quando esses grandes empresários entram em crise, vão buscar a ajuda na mão visível do Estado para dividirem o prejuízo. Os liberais têm aversão a gastos do Estado em educação, saúde,
segurança pública, dentre outros, mas não perdem a chance de usufruírem das benesses da mesma instituição quando convém. A diferença de tratamento entre as discussões sobre a volta de políticas públicas do novo governo Lula e o rombo das Lojas Americanas prova isso. Quem vai pagar esse rombo? O leitor tem alguma dúvida? É claro que somos nós, o contribuinte!
1 É Professor de Ética e Filosofia política da UFS e líder do Grupo de Pesquisa do mesmo nome, cadastrado junto ao CNPq.